Dona
Maricota é uma senhora de muitas idades, depois que seu esposo
desapareceu, sua atividade principal foi observar a vida ativa de sua
rua. Era comum as pessoas sumirem de repente. Como nunca tinham
respostas dos sumiços, os entes próximos desistiam de procurar. Dona
Maricota, sabia de tudo o que passava na sua rua, percebia quando tinha
gente nova, sabia dos namoricos dos adolescentes que se encontravam as
escondidas no beco em frente, sabia quando alguém comprava um móvel,
sabia até os dias de chuva e os dias de transa dos casais. Se precisasse
de uma informação, poderia perguntar pra ela, esclarecia sem erro tudo
relacionado a qualquer morador dali, seria uma excelente repórter
investigativa da cidade.
Com o tempo este hábito de dona Maricota começou a incomodar os vizinhos, que
perderam suas privacidades, graças a língua ativa da velha senhora que,
não deixava passar uma informação sequer. Logo as intrigas e confusões
começaram, todos repudiavam-na, cortaram amizade com Maricota, as
crianças sujavam as paredes de sua casa, jogavam pedras nas janelas e
nos telhados, e os jovens riscavam apelidos grosseiros em sua porta.
Mudou-se para outra cidade rapidamente.
Dona
Maricota sempre foi muito católica, mas não lia a Bíblia Sagrada como o
padre ordenava, sentia satisfeita com os sermões na missa. Odiava rezar
os terços, pra ela era um costume muito chato e uma perda de tempo. Não
foi as missas depois que seu marido faleceu, resolveu voltar a
frequentar a igreja aos domingos em sua nova cidade. Ficou muito calada
nos primeiros dias, fazendo suas orações individuais e observando os
fiéis e moradores daquela região, até colocarem ela em reuniões de
grupo. Isto foi o fim do jejum de fofocas, ela já conhecia boa parte do
hábito dos fiéis daquela igreja, logo as intrigas começaram. A igreja
fechou algumas semanas depois. Maricota vivia em solidão, não conseguia
mais amigos e muito menos companheiros, ficava sempre com seus cotovelos
calejados debruçada na janela.
Depois
do fechamento da igreja ficou mais rancorosa, sentia que as pessoas não
eram felizes e que sempre a maltratavam por ser a única viúva da
região, suas críticas alheias ficaram mais ácidas. Da sua janela
provocava qualquer um que passasse por sua rua. Passou ser tratada como
louca, a irritação dos pedestres eram sua diversão diária, ficava até
anoitecer naquela rotina. Um dia viu Seu Omar sair da casa de dona Rita,
mulher casada e mãe de dois meninos, dona Maricota percebeu que ele
estava com um papel nas mãos e ainda viu o momento que Seu Omar beijava o
rosto de Rita em agradecimento. Mais tarde quando Vicente, marido de
dona Rita passou por sua janela, Maricota disse claramente que sua
mulher estava lhe botando chifres, ainda estava deixando cartinhas para
Seu Omar.
A
fúria subiu na cabeça de Seu Vicente, correu até o quintal pegou um
machado, e sumiu com sua esposa. Nunca mais souberam do paradeiro de
Rita, Omar e Vicente. Os meninos, filhos de Rita, passaram a morar com a
tia, irmã de Seu Vicente. Dona Maricota fazia suas orações sempre após o
pôr do Sol, depois voltava pra janela. Certa vez ouviu o sino da igreja
badalar alto enquanto orava, pensou que a igreja havia sido reaberta.
Foi correndo para a igreja e viu as portas fechadas, não entendeu
aquilo.
No
dia seguinte, no mesmo horário de suas rezas, ouviu um coro de vozes em
oração vinda do outro lado da rua, de início pensou estar ouvindo
coisas depois, percebeu sombras nas paredes ao final da rua, a
iluminação era fraca e antiquada como a velha cidade. Era uma sexta-feira
santa, ela que sempre foi muito religiosa, observou se aproximar uma
procissão e ficou confusa de como poderia não estar sabendo. Resolveu
fica na janela para ver que estava na tal procissão. As sombras se
aproximavam, ao longe percebeu que as pessoas usavam túnicas brancas e,
mascaras em forma de cones sobre a cabeça. O primeiro na fila, que
guiava a procissão segurava uma enorme cruz preta, os restante
carregavam velas vermelhas. O som do que parecia ser um mantra era
pausado de bumbo, bem fúnebre, gemidos, gritos lancinantes e cantos:
“Reza
mais, reza mais, reza mais uma oração; Reza mais, reza mais pra alma
que morreu sem confissão; Reza mais, reza mais, reza novena e trezena;
Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem cumprir pena”.
Assustada
com a estranheza da procissão, ela continuou na janela a observar, até
que um dos participantes saiu de onde estava e foi em sua direção com a
vela acesa, pedindo-lhe que guardasse a vela, que eles logo voltariam
para buscar: “Mulher, guarde sua língua, a noite é dos mortos. Guarde
esta vela pra mim, eu volto para buscar.” e se juntou aos outros. No dia
seguinte, no mesmo horário o sino tocou, o ritual havia começado.
Quando a procissão passou, um participante pede a vela e diz: “Mulher,
amanhã estaremos juntos em outras paragens, mas guarde sua língua, a
noite é dos mortos”. Maricota caminha à seu quarto, vai pegar a vela
acesa que o homem de estranha máscara, havia pedido pra que ela
guardasse na noite anterior. Calada e pensativa, tenta decifrar as
últimas palavras deste mesmo homem.
Ao
entrar em seu quarto, no lugar da vela guardada, Maricota se depara com
um pedaço de um fêmur de um defunto, sente uma dor aguda vinda de
repente no coração, sua língua adormece, e ela cai no chão dura. Sem
tempo de pedir socorro, sem tempo de pedir perdão.
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