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segunda-feira, 3 de outubro de 2016

9 - PROCISSÃO DAS ALMAS


Dona Maricota é uma senhora de muitas idades, depois que seu esposo desapareceu, sua atividade principal foi observar a vida ativa de sua rua. Era comum as pessoas sumirem de repente. Como nunca tinham respostas dos sumiços, os entes próximos desistiam de procurar. Dona Maricota, sabia de tudo o que passava na sua rua, percebia quando tinha gente nova, sabia dos namoricos dos adolescentes que se encontravam as escondidas no beco em frente, sabia quando alguém comprava um móvel, sabia até os dias de chuva e os dias de transa dos casais. Se precisasse de uma informação, poderia perguntar pra ela, esclarecia sem erro tudo relacionado a qualquer morador dali, seria uma excelente repórter investigativa da cidade. 
Com o tempo este hábito de dona Maricota começou a incomodar os vizinhos, que perderam suas privacidades, graças a língua ativa da velha senhora que, não deixava passar uma informação sequer. Logo as intrigas e confusões começaram, todos repudiavam-na, cortaram amizade com Maricota, as crianças sujavam as paredes de sua casa, jogavam pedras nas janelas e nos telhados, e os jovens riscavam apelidos grosseiros em sua porta. Mudou-se para outra cidade rapidamente. 
Dona Maricota sempre foi muito católica, mas não lia a Bíblia Sagrada como o padre ordenava, sentia satisfeita com os sermões na missa. Odiava rezar os terços, pra ela era um costume muito chato e uma perda de tempo. Não foi as missas depois que seu marido faleceu, resolveu voltar a frequentar a igreja aos domingos em sua nova cidade. Ficou muito calada nos primeiros dias, fazendo suas orações individuais e observando os fiéis e moradores daquela região, até colocarem ela em reuniões de grupo. Isto foi o fim do jejum de fofocas, ela já conhecia boa parte do hábito dos fiéis daquela igreja, logo as intrigas começaram. A igreja fechou algumas semanas depois. Maricota vivia em solidão, não conseguia mais amigos e muito menos companheiros, ficava sempre com seus cotovelos calejados debruçada na janela.  
Depois do fechamento da igreja ficou mais rancorosa, sentia que as pessoas não eram felizes e que sempre a maltratavam por ser a única viúva da região, suas críticas alheias ficaram mais ácidas. Da sua janela provocava qualquer um que passasse por sua rua. Passou ser tratada como louca, a irritação dos pedestres eram sua diversão diária, ficava até anoitecer naquela rotina. Um dia viu Seu Omar sair da casa de dona Rita, mulher casada e mãe de dois meninos, dona Maricota percebeu que ele estava com um papel nas mãos e ainda viu o momento que Seu Omar beijava o rosto de Rita em agradecimento. Mais tarde quando Vicente, marido de dona Rita passou por sua janela, Maricota disse claramente que sua mulher estava lhe botando chifres, ainda estava deixando cartinhas para Seu Omar. 
A fúria subiu na cabeça de Seu Vicente, correu até o quintal pegou um machado, e sumiu com sua esposa. Nunca mais souberam do paradeiro de Rita, Omar e Vicente. Os meninos, filhos de Rita, passaram a morar com a tia, irmã de Seu Vicente. Dona Maricota fazia suas orações sempre após o pôr do Sol, depois voltava pra janela. Certa vez ouviu o sino da igreja badalar alto enquanto orava, pensou que a igreja havia sido reaberta. Foi correndo para a igreja e viu as portas fechadas, não entendeu aquilo. 
No dia seguinte, no mesmo horário de suas rezas, ouviu um coro de vozes em oração vinda do outro lado da rua, de início pensou estar ouvindo coisas depois, percebeu sombras nas paredes ao final da rua, a iluminação era fraca e antiquada como a velha cidade. Era uma sexta-feira santa, ela que sempre foi muito religiosa, observou se aproximar uma procissão e ficou confusa de como poderia não estar sabendo. Resolveu fica na janela para ver que estava na tal procissão. As sombras se aproximavam, ao longe percebeu que as pessoas usavam túnicas brancas e, mascaras em forma de cones sobre a cabeça. O primeiro na fila, que guiava a procissão segurava uma enorme cruz preta, os restante carregavam velas vermelhas. O som do que parecia ser um mantra era pausado de bumbo, bem fúnebre, gemidos, gritos lancinantes e cantos:  

“Reza mais, reza mais, reza mais uma oração; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem confissão; Reza mais, reza mais, reza novena e trezena; Reza mais, reza mais pra alma que morreu sem cumprir pena”. 

Assustada com a estranheza da procissão, ela continuou na janela a observar, até que um dos participantes saiu de onde estava e foi em sua direção com a vela acesa, pedindo-lhe que guardasse a vela, que eles logo voltariam para buscar: “Mulher, guarde sua língua, a noite é dos mortos. Guarde esta vela pra mim, eu volto para buscar.” e se juntou aos outros. No dia seguinte, no mesmo horário o sino tocou, o ritual havia começado. Quando a procissão passou, um participante pede a vela e diz: “Mulher, amanhã estaremos juntos em outras paragens, mas guarde sua língua, a noite é dos mortos”. Maricota caminha à seu quarto, vai pegar a vela acesa que o homem de estranha máscara, havia pedido pra que ela guardasse na noite anterior. Calada e pensativa, tenta decifrar as últimas palavras deste mesmo homem.  
Ao entrar em seu quarto, no lugar da vela guardada, Maricota se depara com um pedaço de um fêmur de um defunto, sente uma dor aguda vinda de repente no coração, sua língua adormece, e ela cai no chão dura. Sem tempo de pedir socorro, sem tempo de pedir perdão.

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